Estudo desvenda mecanismo imune que desencadeia a tempestade de citocinas típica da COVID-19

Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) demonstraram pela primeira vez que, em pacientes com COVID-19, um mecanismo imunológico conhecido como inflamassoma participa da ativação do processo inflamatório que pode causar danos em diversos órgãos e até mesmo levar à morte.

Resultados da pesquisa, conduzida com apoio da FAPESP, foram divulgados nesta terça-feira (24/11) no Journal of Experimental Medicine. Segundo os autores, os achados têm potencial para aprimorar tanto o prognóstico da doença – ajudando os médicos a identificar precocemente pacientes de alto risco – quanto o tratamento dos casos graves.

“Já existem medicamentos aprovados para uso humano que são capazes de inibir a ativação do inflamassoma. Essas drogas poderão agora ser testadas no contexto da infecção pelo SARS-CoV-2”, diz à Agência FAPESP Dario Zamboni, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e coordenador da investigação.

No tecido pulmonar de um indivíduo que morreu após contrair a COVID-19 é possível visualizar em algumas células inflamassomas ativos (punctas), representados pelos pontos vermelhos. A cor verde marca as fibras de colágeno, enquanto a azul, os núcleos das células pulmonares. A cor rosa representa as células epiteliais (imagem: Keyla S. G. de Sá/FMRP-USP)

Como explica o pesquisador, quase todas as células imunes são equipadas com um complexo proteico conhecido como inflamassoma. Quando uma dessas proteínas identifica um sinal de perigo (como uma partícula viral ou bacteriana, por exemplo), essa maquinaria de defesa é acionada. Como resultado, a célula entra em um processo de morte programada (um tipo de morte inflamatória chamado piroptose) e passa a liberar na circulação moléculas sinalizadoras (citocinas) que atraem para o local um verdadeiro exército de glóbulos brancos. Desse modo, tem início uma resposta inflamatória que, em última instância, visa destruir a potencial ameaça ao organismo.

“A resposta a diversos patógenos envolve a ativação de inflamassoma e, na maioria das vezes, isso ajuda a barrar a infecção e proteger o organismo. Mas em alguns pacientes com COVID-19 parece haver uma superativação do sistema de defesa e agora estamos tentando entender por que isso acontece”, conta Zamboni.

O envolvimento desse mecanismo imune na inflamação sistêmica que caracteriza a forma grave da COVID-19 é algo que vem sendo estudado por cientistas de diversos países nos últimos meses. O grupo de Ribeirão Preto foi o primeiro a demonstrar a ativação de um tipo específico de inflamassoma em resposta à infeção pelo SARS-CoV-2 em pacientes.

“Importante ressaltar que existe mais de um tipo de inflamassoma – o que varia é a proteína responsável por mediar a ativação do complexo proteico. Nós observamos nos pacientes com COVID-19 a presença do inflamassoma mediado pela proteína NLRP3, um dos mais comuns e mais bem estudados. Mas é possível que outros tipos também participem da resposta ao SARS-CoV-2”, diz Zamboni.

Três frentes de investigação

As conclusões apresentadas no artigo estão baseadas em três conjuntos de experimentos. O primeiro deles envolveu células imunes de doadores saudáveis, que foram infectadas com o novo coronavírus em laboratório. No experimento, foi usado apenas um tipo de leucócito denominado monócito.

“Administramos na cultura uma concentração viral considerada baixa, algo como um vírus para cada célula. Mesmo assim, 75% dos monócitos morreram após 24 horas, o que revela o potencial destruidor do vírus”, conta Zamboni.

A presença de lactato desidrogenase (LDH) no meio de cultura indicou aos pesquisadores que as células estavam morrendo por piroptose, uma vez que essa molécula é liberada quando a membrana celular é rompida e o conteúdo intracelular extravasa na circulação – fenômeno que caracteriza a morte inflamatória. Já a presença das citocinas IL-18 (interleucina-18) e IL-1β (interleucina-1 beta) sugeriu que esse “suicídio celular em série” estava relacionado com a ativação do inflamassoma de NLRP3 – o que foi confirmado por meio de microscopia.

“Quando esse tipo de inflamassoma é ativado, as proteínas que formam o complexo – normalmente espalhadas pelo citoplasma – se agregam formando uma estrutura chamada puncta, que pode ser observada no microscópio. Quando isso acontece, é ativada uma enzima chamada caspase-1, responsável por ‘processar’ os peptídeos precursores das citocinas pró-inflamatórias, como IL-18 e IL-1β, deixando as moléculas em sua forma ‘madura’ e ativa”, explica o pesquisador.

O segundo conjunto de experimentos foi feito com amostras clínicas de 124 pacientes internados no Hospital de Clínicas da FMRP-USP entre os meses de abril e julho, com quadros moderados ou severos de COVID-19. Os resultados foram comparados com dados de pessoas internadas por outros motivos, que serviram como controle.

Por meio de testes imunoenzimáticos (baseados na reação entre antígenos e anticorpos) e sondas moleculares, foi possível comprovar que os glóbulos brancos dos pacientes com COVID-19 tinham, em média, quantidades muito maiores de IL-18 e da enzima caspase-1 em sua forma ativa.

No microscópio, os cientistas observaram que as punctas estavam presentes em maior quantidade nas células imunes dos infectados pelo SARS-CoV-2. E, por meio de análises estatísticas, os pesquisadores descobriram que, quanto mais sinais de ativação de inflamassoma o paciente apresentava no momento de admissão hospitalar, pior era sua evolução clínica e maior a probabilidade de morrer.

O terceiro e último grupo de experimentos foi feito com amostras de tecido pulmonar de cinco pessoas que morreram após contrair o SARS-CoV-2, obtidas durante um procedimento de autópsia minimamente invasiva. As análises revelaram a presença de leucócitos infectados pelo vírus e, no interior dessas células, foi possível visualizar a presença das punctas características do inflamassoma de NLRP3.

Próximos passos

Os ensaios realizados até o momento contaram com apoio da FAPESP por meio de um Projeto Temático e de um Auxílio à Pesquisa Regular concedidos a Zamboni, que também integra a equipe do Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão da FAPESP sediado na FMRP-USP.

O grupo composto por mais de 40 pesquisadores tenta agora descobrir se outros tipos de inflamassoma estão envolvidos na resposta ao novo coronavírus e por que o patógeno ativa tão intensamente esse tipo de mecanismo imunológico.

“Estamos fazendo novos experimentos nos quais comparamos a ativação do inflamassoma em resposta ao SARS-CoV-2 e a outros vírus, como o causador da gripe H1N1”, conta Zamboni.

Em outra frente, os cientistas testam o uso de um fármaco capaz de inibir o inflamassoma de NLRP3 em pacientes com a forma grave da COVID-19. Resultados preliminares promissores já foram divulgados na plataforma medRxiv (leia mais em: agencia.fapesp.br/33890).

“Procuramos também outras drogas inibidoras do inflamassoma de NLRP3 que possam ser testadas em um ensaio clínico. À medida que desvendarmos os mecanismos de ativação do inflamassoma na COVID-19, poderemos identificar drogas capazes de reduzir o processo inflamatório de forma mais eficiente”, diz Zamboni.

O artigo Inflammasomes are activated in response to SARS-CoV-2 infection and are associated with COVID-19 severity in patients pode ser lido em: https://rupress.org/jem/article/218/3/e20201707/211560/Inflammasomes-are-activated-in-response-to-SARS?searchresult=1.

Fonte: Karina Toledo | Agência FAPESP
 

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