Por meio de um potente feixe de luz síncrotron foi possível determinar, em três dias, a estrutura de mais de 200 cristais de duas proteínas do novo coronavírus (SARS-CoV-2).
A investigação realizada por pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São de Paulo (IF-USP) tem importância não só pela temática – essencial para o desenvolvimento de um possível fármaco contra a COVID-19 –, mas também pelo seu caráter de ineditismo.
O experimento, realizado por Aline Nakamura e André Godoy, inaugurou a primeira estação de pesquisa do Sirius – o acelerador de partículas que está sendo finalizado no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), a mais complexa infraestrutura científica do país.
“Tivemos a oportunidade de ser os primeiros a experimentar a linha Manacá, de cristalografia de proteínas, o que deu uma agilidade enorme para o nosso estudo. Com a pandemia as fontes de luz síncrotron existentes no mundo pararam, mantendo apenas os experimentos relacionados à COVID-19. No Sirius, não foi diferente. A despeito de ainda estar em fase de comissionamento, também se abriu a possibilidade de utilizá-lo pela primeira vez com estudo relacionado ao novo coronavírus”, diz Glaucius Oliva , coordenador do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar) e que lidera a pesquisa sobre a descoberta de fármacos antivirais para COVID-19.
O CIBFar é um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP). Além da parceria do CNPEM, o projeto que busca novos fármacos para COVID-19, apoiado pela FAPESP, reúne também pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP), dos Institutos de Química de São Carlos (IQSC-USP), da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP-USP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“O que conseguíamos fazer em horas no antigo acelerador de elétrons do CNPEM, agora fazemos em minutos”, celebra Godoy, pesquisador com dez anos de experiência em análises realizadas em outras fontes de luz síncrotrons espalhadas pelo mundo.
O experimento de estreia durou três dias, mas a expectativa é que, no futuro, a análise no Sirius se torne ainda mais eficiente. “Como ele ainda está em comissionamento, não está com toda a sua potência. Já tem raios X saindo da janela, atingindo os cristais congelados em temperaturas criogênicas, e também um detector para medir a difração da luz síncrotron pelos cristais, e com isso obter a estrutura das proteínas que os constituem”, explica Oliva.
No entanto, de acordo com o pesquisador, faltam ainda os braços robóticos necessários para posicionar os cristais, por exemplo. “Por isso, para mudar os cristais analisados era preciso fazê-lo manualmente. Durante o período de comissionamento de todo o anel síncrotron, também é inviável usar a potência máxima. Mesmo assim, foi muito eficiente e os testes foram muito valiosos”, diz Oliva, que também foi o primeiro pesquisador a testar o UVX, fonte de luz síncrotron de segunda geração projetada e construída por brasileiros na década de 1990 e que foi agora substituída pelo Sirius.
O acelerador de elétrons de quarta geração gera um tipo de luz capaz de revelar a estrutura atômica (organização dos átomos) de materiais orgânicos e inorgânicos. Oliva explica que o equipamento possui tecnologias avançadas de construção de ímãs e sistemas modernos para obtenção de vácuo de alta qualidade, bem como sistemas de controle dos feixes de elétrons que permitem que as partículas subatômicas cheguem a velocidades próximas da luz e, assim, emitir luz síncrotron ao terem suas trajetórias alteradas.
Quebra-cabeça
Para entender a necessidade de determinar a estrutura de pequenos cristais de proteína para assim descobrir um fármaco contra o novo coronavírus pode-se imaginar a montagem de um quebra-cabeça em que o cenário que está sendo montado são as proteínas (os alvos dentro do vírus) e as peças que devem ser encaixadas especificamente em cada posição são os compostos químicos. Se a substância química se encaixa perfeitamente na proteína-alvo, é possível bloquear a ação desta proteína e, assim, impedir a entrada ou a replicação do vírus dentro das células humanas.
Dessa forma, os pesquisadores buscaram, por meio da luz síncrotron, identificar a posição dos milhares de átomos que constituem duas proteínas do coronavírus e, assim, sua estrutura. Entre as duas proteínas estudadas, uma é a protease chamada “principal” (M-pro, proteína estrutural número 5,nsp5) responsável por “cortar” a longa cadeia proteica sintetizada dentro da célula invadida a partir da informação contida no genoma viral, o que as torna ativas e funcionais para a replicação do vírus dentro das células humanas. A outra proteína estudada é uma enzima (nsp15) que “corta” o RNA do vírus, e cuja função dentro da célula humana ainda é alvo de estudos.
“Proteínas têm uma superfície toda rebuscada, composta pela forma como seus átomos estão organizados, e que têm nas suas reentrâncias os sítios onde sua função catalítica é executada, seja no vírus, seja na célula infectada. A nossa missão neste estudo é, além de achar a estrutura dessas duas proteínas, também encontrar moléculas, compostos ou substâncias candidatas a fármacos que se encaixem perfeitamente nesses sítios e assim possam bloquear a ação do vírus”, diz.
Muito mais assertiva que procurar um fármaco ao acaso, ou testar substância por substância em cultura celular, a equipe de pesquisadores utilizou uma estratégia chamada de Fragment Screening. Nela, centenas de moléculas muito pequenas, que são fragmentos de fármacos já conhecidos e de uso comum, são colocadas em contato com os cristais das proteínas-alvo. O objetivo é verificar onde e se elas podem se ligar. “A partir desses experimentos, moléculas maiores e mais complexas podem ser sintetizadas para conectar os fragmentos previamente identificados, aí sim, os verdadeiros candidatos a fármacos antivirais”, diz Oliva.
Depois da etapa de cristalografia das proteínas e da triagem de substâncias, caso identifiquem potenciais candidatos os pesquisadores terão que testar os fármacos em cultura celular, modelo animal e em humanos, seguindo todas as etapas necessárias para o desenvolvimento de um fármaco, até que ele possa, finalmente, ser utilizado por pacientes infectados pelo SARS-CoV-2.
Além da linha Macaná de cristalografia de proteínas, o projeto do Sirius contempla outras 13 linhas de luz. Após a etapa inicial de funcionamento, a expectativa é comportar até 38 estações de pesquisa, otimizadas para experimentos diversos, que poderão ser realizados simultaneamente para atender pesquisas nas mais diversas áreas, como saúde, energia, novos materiais, meio ambiente, dentre outras.
“Há muito trabalho pela frente, mas cada avanço do Sirius reforça que temos competência para lançar a ciência e a tecnologia do país a um novo patamar. A comunidade científica brasileira faz um ótimo trabalho e nós atuamos para apoiá-la, oferecendo condições de pesquisas inéditas. Estamos montando uma máquina para ser competitiva internacionalmente, projetada por brasileiros e construída em parceria com a indústria nacional”, afirma Antonio José Roque da Silva, diretor-geral do CNPEM e do Projeto Sirius.
*Com informações do CNPEM.
Fonte: Maria Fernanda Ziegler* | Agência FAPESP
Foto: CNPEM/divulgação